sexta-feira, 17 de julho de 2009

Lá, eu não sei aonde...

Véspera de viagem, campainha...
Não me sobreavisem estridentemente!

Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de por no estribo um pé
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir.

Quero, neste momento, fumando apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa? Todo o Universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.

Sabe-se a náusea próxima o cigarro. O comboio já partiu da outra estação...
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio desperdir-se de mim,
Minha família abstrata e impossível...
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida -
"E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui? -

Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos...

Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê-se - dizem - que tenho vivido no estrangeiro.
Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.
E a mão com que pego na mala tre-me e a ela.

Partir!
Nunca voltarei,
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.
Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!...




Álvaro de Campos (* 1890 - + ?)
É um dos heterônimos mais conhecidos de Fernando Pessoa, o qual declarou que Campos :

«Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inactividade.»

Era um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo. Pessoa disse também em relação a este heterónimo que :

<Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda. Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmolas às portas da alegria. >>

Entre todos os heterónimos, Campos foi o único a manifestar fases poéticas diferentes ao longo de sua obra. Houve três fases distintas na sua obra: decadentista (influenciado pelo Simbolismo), futurista ( versilibrista, jactante, e com uma linguagem eufórica onde abundam as onomatopeias, uma série de poemas de exaltação do Mundo moderno, do progresso técnico e científico, da evolução e industrialização da Humanidade) e niilista (desilusão com o Mundo em que vive, a tristeza, o cansaço).

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